segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Sobre isto, meu corpo é histérico


 por Bruna Sant'Anna

    Sair despreparada de casa foi essencial para ser tão surpreendida e sensibilizada por dois trabalhos incríveis: "Hysteria", do Grupo XIX de Teatro e "Sobre isto, meu corpo não cansa", da Quasar Cia de Dança. Devo dizer que tenho receio de colocar minhas impressões aqui e me tornar repetitiva ou superficial; não vou a uma apresentação para levantar questões críticas ao mundo, mas vou pelo simples fato de ser prazeroso assistir arte.


(Grupo XIX de Teatro - Hysteria)

            O Grupo XIX escolheu a Igreja da Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, na Penha, São Paulo, como cenário, construída por escravos no século XIX, mesma época em que as personagens se encontram em um hospício para serem curadas pelo Dr. Mendes e por Jesus e se verem livres daquela internação. Enquanto isso não acontece, aquelas mulheres, espertas e inocentes ao mesmo tempo, mostram com doses de bom humor como é passar um dia lá, mas mostram do jeito que faz qualquer pessoa tímida, como eu, querer sair correndo antes que seja tarde demais: há diversas interações com o público feminino, sem sequer cogitar olhar para os meros espectadores masculinos, fazendo-os inexistentes. Para o meu desespero, fui solicitada algumas vezes, mas as mulheres me acolheram tão bem naquela casa que abri meus braços gradativamente àquela ingenuidade adoecida.

            Seus desejos eram claros: liberdade, cura, voz ouvida, um bom casamento, muito coito e bem-estar dos filhos. Esse é o papel da mulher: ser uma boa mãe e cuidar da casa, afinal, o que mais a mulher pode ser ou querer da vida? O que é uma casa sem uma mãe? Reduzir a mulher a essas funções e ainda calá-las é abafar uma humanidade ímpar, histérica por si só, pelo singelo ato de olhar o mundo com olhos de mulher, por sentir.

            É uma peça envolvente, especialmente para as mulheres, nem extensa nem longa, que me fez perguntar para as outras mulheres que estavam comigo por que os homens entravam primeiro e pegavam os melhores lugares e que apagou completamente essa sensaçãozinha inicial de inferioridade ao me tirarem para dançar, sorrir e gritar, ao me pedir ler um bilhete da coleção especial de bilhetes, ao orar por mim e pelas outras para que haja muito coito nas nossas vidas, ao mostrar que mesmo enclausuradas, a mulher pode ser tão grande e com tantas faces dentro de um corpo só.

            Se Hysteria me trouxe essa reflexão, o espetáculo de Henrique Rodovalho, "Sobre isto, meu corpo não cansa", ressaltou em mim, em meio a tantas histórias, sentimentos e risadas, o que pensei ser uma das características mais fortes de uma mulher: a capacidade de amar de um jeito singular (ou não). A trilha sonora é esmagadoramente composta por vocais femininos da música brasileira (Clarice Falcão, Malu Magalhães e Tulipa Ruiz) que cantam histórias de amores mais contemporâneos, distantes daquele século XIX, que ao mesmo tempo em que não desgruda de um abraço ou faz gracinhas com cheiro de inocência infantil para alguém, tem os pés no chão. A maior participação vocal masculina é nos momentos em que todos os bailarinos cantam em cena.

(Quasar Cia de Dança - Sobre isto, meu corpo não cansa)

            Incansáveis parecem as tentativas do elenco de procurar e arriscar, pois com certeza há falhas pelo caminho e este está permeado por uma movimentação aconchegante, surpreendente (ousadinha, às vezes) e fluida, fazendo com que eu me sinta dançando simplesmente ao andar pela rua, por atingir gentilmente a minha realidade. Esse toque é o que posso trazer agora de mais sincero. Vai bem além do gostar.

            Vai também, junto com Hysteria, para a seção de "reflexões válidas para a vida". Quantas coisas se perdem pelo caminho, quantas são agregadas, outras exigidas, e mais algumas, afloradas. Nascer mulher é um ato ousado e carregar tatuagens invisíveis que se revelam em certos momentos, para certas pessoas, torna a tarefa de marcar o mundo com a própria existência mais amável. Meus rabiscos, desenhos e escritas na pele me tornam sedenta, incansável, histérica.


Bruna Sant'Anna
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   Cursando Letras na Universidade de São Paulo (USP) e Técnico de Dança, reconhecido pelo MEC, desenvolve há mais de sete anos as danças urbanas e também a dança do ventre. Com o T.F. Style, fez parte de temporadas dos espetáculos “Encontros e Desencontros”, “Deserto de Ilusões”, “Tempo”, “Beco” e “Anti” nos teatros Coletivo, Zanoni Ferrite, Centro da Terra, Sérgio Cardoso, Galeria Olido, Alfredo Mesquita, Martins Pena, entre outros. Participou da Virada Cultural de São Paulo e do Estado, além de realizar os Circuitos Culturais do Estado, SESC de Artes e Circuito São Paulo de Cultura. Faz aulas regulares com Igor Gasparini, Sonek e Félix Pimenta. Realizou workshops com Angel B (BRA), de “Dancehall”; Bryan Tanaka (USA), Casper Smart (USA), Guillaume Lorentz (FRA) e Khasan Brailsford (USA) de “Free Style Hip Hop”; Vanessa Conde (BRA), Laure Courtellemont (FRA), Lucas Migliorini (BRA), Karla Mendes (BRA), Cati Borba (BRA), Carolina Mercado (BRA) e Guillaume Lorentz (FRA), de “Ragga Jam”; Félix Pimenta de “Wacking” e Soneka e Popping D (BRA), de “Popping” e “Locking”. Atualmente, ministra aulas de Danças Urbanas no Phalibis Studio de Dança e faz parte do Programa Vocacional de Dança no CEU Formosa.
   

domingo, 23 de novembro de 2014

Desenhos... Pinturas... O corpo-pincel

por Igor Gasparini

"Ensaio-Pesquisa" desenvolvido como Artista Orientador do CEU Formosa pelo Programa Vocacional Dança, da Prefeitura de São Paulo - Equipe Leste 1 - Coordenação: Cláudia Palma


Desenhos... Pinturas... O corpo-pincel


            Muitos são os anseios que me trouxeram, neste ano, para o Vocacional. Embora já tenha inclusive pesquisado o Vocacional Apresenta como estudo de caso na monografia de Especialização em Jornalismo Cultural pela PUC-SP, com ênfase na comunicação entre espetáculo e público, ainda não havia conseguido abrir espaço para me dedicar ao Programa como Artista Orientador. Em 2014, interrompi o meu trabalho como jornalista para dedicar-me exclusivamente à dança: na prática, nas aulas, no T.F.Style Cia de Dança, na pesquisa e no Vocacional.


Não sei identificar bem quais são os limites de cada uma dessas atuações, visto que penso em todas elas interconectadas quando revejo minha trajetória na dança. Entretanto, consigo perceber que há algo que interliga todas essas ações: a minha vontade comunicativa por meio da dança. Acredito na importância de um trabalho que promova um diálogo com o público, que o leve a refletir, pensar, questionar. Não defendo que deva haver um entendimento completo da obra, mas eu, enquanto artista, devo apresentar caminhos para que o público possa encontrar suas formas de interpretação. E o meio utilizado para essa comunicação é o corpo, mídia de si mesmo, que por si só, já apresenta um fluxo constante de troca de informações, segundo a Teoria Corpomídia, (KATZ e GREINER, 1998).
A comunicação ocorre permanentemente na relação entre corpo e ambiente. Todo corpo, humano ou não, existe e pode ser chamado de corpo quando puder ser identificado por uma coleção circunscrita de informações que não para de se transformar. “Meio e corpo se ajustam permanentemente num fluxo inestancável de transformações e mudanças” (KATZ e GREINER, 1998, p. 91). A comunicação é então tecida por esse ajuste contínuo de transformações.
Sendo cada corpo uma mídia de si mesmo, isto é, do conjunto circunstancial de informações que o torna corpo e que nunca se completa, é possível afirmar que os processos de comunicação no ambiente não se estancam, visto que o fluxo de trocas entre ambos é constante. É no fluxo comunicacional que corpo e ambiente lidam com as informações, e elas buscam a sua sobrevivência através da adaptação e da reprodução. É neste ponto que se inscreve o meu momento profissional atual e muito do que vejo como potencial nos Vocacionados, pois cada corpo que chega às orientações já traz consigo toda a sua coleção de informações, de histórias, de memórias.

 

            E foi com o corpo, ou com vários deles, que trabalhei neste ano no CEU Formosa. Corpos bastante distintos e com variadas potencialidades, do jovem ao idoso, Vocacionados com e sem experiência na dança, e até portadores de necessidades especiais. Essa heterogeneidade apresentou a mim uma paleta de muitas cores, cada corpo com seu potencial criativo, com sua história de vida, com sua vontade comunicativa, dançando... E pintando... E dançando.
            Desenvolvi alguns processos criativos e a pintura norteou a investigação. Inspirados ora pela música, ora por técnicas variadas entre as danças urbanas e contemporâneas, ora por laboratórios, ora por experiências bastante individuais, tentamos descobrir esse corpo-pincel. E, com ele, muitas telas foram pintadas: com e no próprio corpo, no corpo do outro; chão, paredes, objetos e teto; dentro e fora do espaço dos encontros; no teatro; na gestão.
            O corpo-pincel, por ser mídia de si mesmo, desenhou sua história. E cada Vocacionado pintou suas memórias e imprimiu nos gestos toda a sua experiência pessoal. A cada encontro foram desenvolvidas novas iniciativas de trabalho, novos disparadores; partes do corpo tornam-se pincéis; e cada um trouxe cada vez mais tinta para nossa grande tela.


       Formas imaginárias ganharam contornos no papel e do papel, dança. Com pequenas intervenções, foram interagindo nas formas um do outro, seja na “tela”, seja no corpo-pincel. E das intervenções, novas formas, novos desenhos, novos contornos. Esse procedimento foi um dos escolhidos para a Mostra de Processos, no qual os Vocacionados, em interação com o público, solicitavam às pessoas que colocassem uma forma (ou um desenho) em um papel para, a partir disso, disparar a última dança da Mostra.
Ainda pensando no processo ao longo deste ano, em outro momento, a dança a partir da escolha de imagens que compõe o material educativo da 29ª Bienal de Arte de São Paulo para, então, resultar em reflexões múltiplas propostas e desencadeadas pelas próprias imagens. Dentre as muitas reflexões: Será possível superar a diferença entre as pessoas? Como a arte e a performance podem ter natureza transformadora? Como nossos gestos revelam quem somos e o que vivemos? A diferença pode ser matéria de interesse para a obra de arte? Um projeto de arte pode ser coletivo? O que é arte? Para que serve a arte? Em geral, tais questionamentos refletem diretamente o processo desenvolvido e a realidade dos Vocacionados dentro do contexto do Programa.


            Gostaria ainda de trazer duas ações realizadas neste período que trouxeram ainda mais tinta para essas reflexões. Com a equipe Leste 1, coordenada por Cláudia Palma, visitamos a exposição de Iberê Camargo no Centro Cultural Banco do Brasil e muitas foram as sensações colocadas na “gaveta dos guardados” (Iberê Camargo, 1993), além das reflexões que reverberam diretamente no trabalho com os Vocacionados. Cada obra de Iberê, notadamente, traz muitas camadas. E, a partir disso, veio a reflexão: Quantas camadas tem a dança? Conseguimos ver ou identificar essas camadas quando assistimos alguém dançando? Quais são as camadas mais profundas, aquelas que servirão de base para esses artistas, e quais são as mais superficiais e até descartáveis?

(Exposição Iberê Camargo - Centro Cultural Banco do Brasil)


A partir do vídeo que mostrava o “processo” desenvolvido por Iberê, uma nova potente reflexão: “A gente passa por muitas coisas lindas para chegar nesta coisa ótima”. Quantas vezes neste processo criativo, desenvolvido por 8 meses, atravessamos bons momentos, mas que são modificados ou remodelados? Às vezes precisamos carcar mais a tinta, às vezes apagar, borrar, misturar as cores. E desses vários momentos, o resultado não pode ser outro: chegamos a essa coisa ótima. Será?
            Em um segundo momento, houve a visita com os Vocacionados à exposição Obsessão Infinita, de Yayoi Kusama, no Instituto Tomie Ohtake. A ideia de visitar essa exposição surgiu em um encontro no qual conversei bastante com duas Vocacionadas portadoras de necessidades especiais. A vontade de visitarmos um espaço expositivo, tendo em vista o processo que temos desenvolvido, já existia. Entretanto, nesta conversa, as duas meninas contaram várias dificuldades que enfrentaram em suas vidas, sendo consideradas loucas por muitos e excluídas de vários contextos. O relato de uma delas, dizendo que, ao entrar na primeira série com 13 anos de idade, sentia-se muito mal porque as meninas atiravam papel nela e a chamava de louca, me fez refletir: o que é a loucura? De onde surge a arte? Por que não da insanidade que todo artista traz consigo? Por que não por meio dos excluídos? Por que não no CEU Formosa? Automaticamente pensei no Bispo do Rosário, artista visual, mas também na exposição em questão, refletindo sobre Yayoi Kusama que, voluntariamente, vive em uma instituição psiquiátrica desde 1977.

(Exposição "Obsessão Infinita" - Yayoi Kusama - Instituto Tomie Ohtake)

            E entre círculos, bolas, pontos, e símbolos fálicos, o que mais nos chamou a atenção foram as múltiplas obsessões, não da artista, mas de todos os que ali estavam. Obsessão pela fila: parece que quanto maior, melhor. Se há fila, lógico que é bom. Vamos nos aglomerar por quilômetros e andar passo a passo até adentrar o grande espaço expositivo. Para que mesmo? Talvez para levar uma recordação e gabar-se de tal “prêmio”.
E a obsessão pela #selfie; com todos os sintomas de alguém com sérios transtornos obsessivos compulsivos. A obsessão por registrar o momento; para levar consigo seu souvenir; para postar sua foto nas redes sociais. Mas... E a experiência? E o olhar? E a sinestesia? Também não era possível, pois uma voz vinha do fundo de cada sala: “Um passo adiante, por favor!”; afinal, estava tão lotado que nem para sentir, nem para a #selfie, havia tempo.
Fui embora um tanto incomodado com isso, afinal, loucos poderiam ser muitos daqueles, menos minhas Vocacionadas que motivaram tal visita. Mas, enfim, voltemos ao processo, e que tal pesquisarmos a obsessão? Novas linhas foram desenhadas, linhas curvas, na verdade, com movimentos circulares, redondos, contínuos...



E a partir de então, era o momento de pensar a Mostra de Processos. “O processo se engendra de maneira cooperativa, com a participação de todos os artistas envolvidos, que atuam conjuntamente no decorrer da própria pesquisa de linguagem. As opções cênicas, nesse caso, não surgem como determinações vindas de fora, mas de dentro das experimentações, possibilitando uma investigação coletiva de caráter processual” (DESGRANGES, 2012, p. 205). Esse trecho extraído do livro “A Inversão da Olhadela: alterações no ato do espectador teatral” resume bem a minha atuação com os Artistas Vocacionados. Em nenhum momento busquei impor algo (de fora), mas eles próprios foram encontrando caminhos (de dentro) que surgiram a partir das várias inquietações corporais e reflexivas desenvolvidas ao longo do ano. O que te move? Qual a busca? Quais questões lhe inquietam? E a partir disso, trabalhamos muito pela improvisação, tentando ao máximo diversificar os disparadores dessa dança, sempre atrelado às sensações e à individualidade.


            Vejo o Vocacional potencializando processos artísticos colaborativos, visto que há a constituição de um coletivo de artistas em trabalho conjunto de investigação. E desta investigação surgiu o tema da nossa Mostra: interior. O que vem de dentro? O que você deseja expressar com sua dança? Qual é essa dança interior? Consequentemente, o objetivo foi então o de mostrar o potencial de cada corpo, individualmente, compensando a heterogeneidade inerente à realidade do nosso grupo.
Aos poucos, fomos percebendo que não era da individualidade que trataríamos, mas da singularidade, pois é esta que nos torna únicos. Cada corpo, com suas histórias (como já abordado neste texto), com sua coleção circunscrita de informações que se torna mídia de si mesmo, desenhando e pintando... Trazendo à tona suas emoções, desejos e todos os outros elementos de nosso estado criador interior. “A definição de um roteiro prévio fornecerá as bases para a improvisação, e o artista irá à cena, permitindo-se viajar pelo inconsciente” (STANISLAVSKI, 2005, p. 257). E nas Mostras, este inconsciente veio à cena, interpretado pela singularidade dos Artistas Vocacionados do CEU Formosa, com todo o seu potencial de corpo, expressando seu interior.

 

Referências:
DESGRANGES, F. A Inversão da Olhadela: alterações no ato do espectador teatral. São Paulo: Hucitec Editora, 2012.
KATZ, H.; GREINER, C. A natureza cultural do corpo. In Lições de Dança 3. Org.: Silvia Soter Roberto Pereira. Rio de Janeiro: Univercidade, 1998.
STANISLAVSKI, C. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

(Vocacionados, Artista-Orientadores, Coordenadores - CEU Formosa)



domingo, 12 de outubro de 2014

Nota de Esclarecimento - Sobre peça "O Unicórnio"


   Gostaria de esclarecer o que segue:

   No último texto "O olhar de um unicórnio", a construção textual "Reconhecida por seu trabalho na área de musicais, ao contrário do que se esperaria, a peça surpreende pelo drama imposto pela sensível protagonista interpretada por Flávia Couto." gerou certa repercussão negativa que gostaria de esclarecer.

   A referida diretora se sentiu ofendida por achar que a afirmação foi preconceituosa com a área de musicais. NÃO! Não há qualquer juízo de valor em tal afirmação. O contexto é simplesmente o de situar o leitor que, embora ela seja inclusive coordenadora do principal curso de teatro musical do país, a peça não tinha essa característica; para que o leitor soubesse que a peça se tratava de um drama. Novamente, não há juízo de valor como se o teatro musical fosse uma área menor ou sem estudo, como ela quis "desabafar".

   Fiz questão, então, de escrever essas linhas para que todos os que acessam o blog, inclusive os muitos amigos que trabalham com teatro musical, não se sintam ofendidos. Tal sensação não foi compactuada com os atores da peça, mas como houve diversas manifestações de repúdio, achei por bem escrever o meu posicionamento. Sempre acompanhei a área, admiro bastante, conheço muitos que trabalham com isso e, acima de tudo, respeito o trabalho desses profissionais!

   E aos que me julgaram, também aconselho pesquisar a minha história. Afinal, também houve demasiado preconceito em consequência deste "desabafo". Como muitos ainda acreditam, assim como afirmou Afrânio Coutinho, os críticos “são apontados como jornalistas que se improvisaram e se converteram rapidamente em juízes; ou então, frustrados que buscaram abrigo nos meios de comunicação para criticar com veemência os que obtiveram êxito na produção cultural”. Mas realidade não é bem assim! Na verdade, o que parece fazer sentido é que nenhum artista gosta de ter o seu trabalho negativamente observado. Quando a crítica é positiva, ótimo, mas se falam qualquer coisa de negativo, minha nossa! Vamos difamar este profissional! Ainda que eu tivesse escrito algo negativo, o mínimo que eu esperava, era um pouco mais de respeito!

   Aos que falaram de estudo, inclusive, vejam as minhas duas graduações + especialização + mestrado. Enfim... Sucesso à peça! Que como escrevi, continua valendo muito à pena!



(Trecho da troca de mensagens. O que se sucedeu depois, em sua página pessoal, nem merece atenção, pois aí sim são diversas reproduções generalizadas de preconceitos!)

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O olhar de um unicórnio


Por Igor Gasparini

“Não, não, havia uma certa escuridão no olhar, principalmente quando ela estava perto dele. Do irmão? É. Ela tinha medo do irmão? A escuridão vinha do medo? A escuridão talvez viesse do medo de se sentir com medo” – O unicórnio, Hilda Hilst.


(O Unicórnio - Foto: Hellena Mello)


Na última segunda, 29, estive no Viga Espaço Cênico, em Pinheiros, para assistir ao espetáculo teatral O unicórnio, dirigido por Christina Trevisan. Reconhecida por seu trabalho na área de musicais, ao contrário do que se esperaria, a peça surpreende pelo drama imposto pela sensível protagonista interpretada por Flávia Couto. Ao lado de Frank Tavantti e Vivyan Albouquerque, a trama constrói-se a partir da adaptação do texto homônimo de Hilda Hilst e o que mais instigou foi justamente o olhar deste trio de atores.

Do olhar triste e sedento por piedade da protagonista aos olhares cínicos dos irmãos, no decorrer da narrativa, é de apodrecer junto à personagem escritora, de sentir suas fraquezas, e querer levantar-se da cadeira para acolhê-la, protegendo da crueldade dos irmãos. Mas seriam irmãos ou seu subconsciente? Escritora ou unicórnio? Sarna ou cacos de vidro? Hilda Hilst ou um personagem qualquer? Muitas são as dúvidas que ficam, mas algo é certo: o público não sai impassível do que ocorre na cena. É de levar um soco no estômago e refletir sobre a vida, sobre suas crenças e sobre a sanidade que buscamos ter.

Vejo o unicórnio por si só como um ser instigante. Na mitologia, apenas as jovens puras, e virgens, são capazes de se aproximar e domar este animal. Obviamente, o texto transformar a escritora em unicórnio é bastante sintomático, afinal, mostra o desejo da protagonista pela pureza, pelo amor verdadeiro, enquanto, como ocorre na vida fora da ficção, o que se vê é justamente a falácia do discurso, marcado fortemente pela crise de identidade. E nesta tensão, o papel dos irmãos é essencial por esfregar em sua cara a grande contradição. Em conflito, a personagem vai pouco a pouco esvaindo e, entre amor e excremento, tem o ápice de sua epifania: “eu acredito... eu acredito... eu acredito...”.

A autora, conhecida por temáticas pornográficas, faleceu em 2004 e deixou um grande legado para a literatura brasileira. Com sua vida pessoal marcada por várias crises, Hilda desenvolveu uma obra muitas vezes interpretada como autobiográfica. Em O unicórnio, há quem afirme ser ela a protagonista, trazendo seus conflitos pessoais em relação à orientação sexual para os personagens dos dois irmãos, como reflexos de seu subconsciente. O lado masculino pederasta e o lado feminino lésbica atormentando sua existência.  

Segundo Eliane Robert Moraes, professora da USP, com quem tive o prazer de ter aulas quando ainda trabalhava na PUC, “ela escreveu poemas místicos voltados a um plano divino e escreveu também uma pornografia deslavada. Ela realmente tem um traço de polarização que não existe em nenhum outro escritor ou poeta brasileiro”. Uma peça de teatro com texto de Hilda Hilst não é algo novo, mas a adaptação de O unicórnio para a cena, trazendo três personagens singulares, bem interpretados por atores com ótimas referências de corpo e interpretação, torna a produção única e merece ser prestigiada.


(O Unicórnio - Foto: Hellena Mello)


O unicórnio fica em cartaz até o dia 27 de outubro, todas as segundas-feiras, 21h, no Viga Espaço Cênico, na rua Capote Valente, 1323. Assistam, mas preparem-se, porque não será uma noite tranquila com cara de “novela das 8”. 




terça-feira, 19 de agosto de 2014

Jornalismo cultural como mediador entre obra e público


por Igor Gasparini

            Não há como dissociar comunicação de cultura. Para Harry Pross (1923-2010)[1], o corpo é um meio de comunicação e gestos e expressões revelam uma cultura local. A cultura configura o corpo e o comportamento, comunicando valores. Segundo este autor, citado por Francisco Rüdiger em A teoria da Comunicação (2004, p. 49), os meios de comunicação podem ser divididos em três categorias: primários, quando a comunicação ocorre entre as pessoas sem instrumentos, como acontece na dança; secundários, na medida em que há o emprego de várias tecnologias na produção da mensagem, como nos vários tipos de impressos; e os terciários, constituídos por sistemas tecnológicos que necessitam de instrumentos tanto do lado do comunicador quanto do lado do receptor, como ocorre no rádio ou televisão. Nestas duas últimas classificações é que habita o jornalismo cultural, fazendo a ligação entre o espetáculo e seu potencial público.

            O Jornalismo Cultural agrega diversos gêneros jornalísticos, que variam desde a informação sobre um espetáculo, como ocorre nos Guias Culturais na forma de um serviço prestado ao leitor para uma consulta mais ligeira, com suas avaliações rasas entre estrelas, bolinhas, e etc., passando pelas resenhas e até os textos mais densos como as críticas.

            A resenha corresponde, segundo José Marques de Melo (1985), a uma apreciação das obras-de-arte ou dos produtos culturais, com a finalidade de orientar a ação dos fruidores ou consumidores. Neste caso, a resenha tem por objetivo indicar qual espetáculo escolher, dentre tantas opções de uma grande metrópole. Essa característica é a principal diferença da crítica, que busca uma apreciação completa do autor/obra.

            Para Daniel Piza, a boa resenha é aquela que ainda em pouco espaço, busca uma combinação de atributos como sinceridade, objetividade, preocupação com o autor e o tema. “Deve ser em si uma ‘peça cultural’, um texto que traga novidade e reflexão para o leitor, que seja prazeroso ler por sua argúcia, humor e/ou beleza” (PIZA, 2007, p. 71 e 72).

            A crítica, por sua vez, faz uma apreciação de outra natureza do autor e da obra. Ela apresenta o contexto histórico, e uma reflexão que necessita de tempo e conhecimento do objeto para ser elaborada. Não à toa, a resenha enquadra-se mais ao jornalismo que se pratica atualmente.

Por outro lado, “a crítica exige diferentes métodos e critérios que tornam o seu resultado incompatível com o exercício periódico e regular em jornal, e mais incompatível com o próprio espírito do jornalismo, que é informação, ocasional e leve”, afirma Marques de Melo em A opinião no jornalismo brasileiro (1985, p. 99).  Os críticos tentam manter seu espaço, oferecer julgamento estético, aprofundar uma análise, entrar na abordagem do bem cultural, porém, o espaço para esse tipo de texto vem diminuindo progressivamente na mídia brasileira. Em todos os cadernos culturais, a figura do crítico profissional das linguagens artísticas (dança, teatro, ópera, música erudita...) está desaparecendo.

“Mas o que deve ser um bom texto crítico? Primeiro, todas as características de um bom texto jornalístico: clareza, coerência, agilidade. Segundo, deve informar ao leitor o que é a obra ou o tema em debate, resumindo a história, suas linhas gerais, quem é o autor, etc. Terceiro, deve analisar a obra de modo sintético mas sutil, esclarecendo o peso relativo de qualidades e defeitos, evitando o tom de ‘balanço contábil’ ou a mera atribuição de adjetivos. Até aqui, tem-se uma boa resenha. Mas há um quarto requisito, mais comum nos grandes críticos, que é a capacidade de ir além do objeto analisado, de usá-lo para uma leitura de algum aspecto da realidade, de ser ele mesmo, o crítico, um autor, um intérprete do mundo” (PIZA, 2007, p. 70).

            E ainda há quem discorde do papel dos críticos, como Afrânio Coutinho, citado por Melo (1985), que afirma que estes “são apontados como jornalistas que se improvisaram e se converteram rapidamente em juízes; ou então, frustrados que buscaram abrigo nos meios de comunicação para criticar com veemência os que obtiveram êxito na produção cultural”. O quanto uma crítica, quando existente, pode influenciar a ida do público a um espetáculo de dança é desconhecida e merece melhor atenção. No caso da dança, deve-se ponderar também que, por conta da breve duração das suas temporadas (uma média de três dias), raramente a crítica consegue ser publicada com o espetáculo ainda em cena.

            Existem ainda, além da crítica e da resenha, outros textos culturais com objetivos distintos. Na coluna de opinião, as características são semelhantes, mas o autor assume seu posicionamento em tom pessoal; a reportagem tem objetivo de levar uma novidade ao leitor e, por vezes, relaciona com fatos do dia a dia, por exemplo, reportando alguma política pública cultural; e perfis e entrevistas relatando vida e carreira de personagens de destaque nacional ou internacionalmente.

            Para Nicolas Bourriaud, em Estética relacional, “a atividade artística constitui não uma essência imutável, mas um jogo cujas formas, modalidades e funções evoluem conforme as épocas e os contextos sociais. A tarefa do crítico consiste em estudá-la no presente” (2011, p. 15). Assim, apresentar as relações entre contexto histórico e atualidade é uma atividade que demanda tempo de pesquisa, realização de entrevistas, vivência entre jornalista e artistas, o que não se faz na mesma agilidade exigida pelo jornalismo diário. E, como observa Daniel Piza, “o jornalismo cultural brasileiro já não é como antes” (2007, p. 7), comparando os textos dos autores do passado com os poucos equivalentes do presente. O autor ainda defende que:

“há muito o que fazer pelo jornalismo cultural no gênero da reportagem, inclusive no chamado ‘hard news’ (as notícias mais quentes, inadiáveis), mas isso não pode ser feito à custa da análise, da crítica, do debate de ideias – vocações características do jornalismo cultural e carências fortes do leitor contemporâneo” (PIZA, 2007, p. 8).

(Espetáculo Anit - T.F.Style Cia de Dança)

Ele exemplifica que são muitas as oposições, de polarizações, que contaminam o jornalismo cultural diariamente: entretenimento versus erudição; nacional versus internacional; regional versus central; jornalista versus acadêmico; reportagem versus crítica; entre outros, que fazem com que a realidade atual deste segmento jornalístico seja bastante obscura até mesmo para os próprios jornalistas que o fazem dia a dia.

 Daniel Piza defende que há muitas pessoas que associam “cultura” a algo inatingível, “exclusivo dos que lêem muitos livros e acumularam muitas informações, algo sério, complicado, sem a leveza de um filme-passatempo” (2007, p. 46). Dessa forma, tanto jornalistas quanto veículos tendem a traçar caminhos exclusivos que enfoquem apenas um lado, ou grupo específico de pessoas. Resenhar o último filme hollywoodiano ou o cinquentenário de algum clássico do cinema? Há espaço para ambos no mesmo veículo? Para ele,

“jornalismo é dosagem. Temas ditos eruditos podem ser tratados com leveza, sem populismo; e temas ditos de entretenimento podem ser tratados com sutileza, sem elitismo. Suplementos semanais podem ganhar vibração jornalística, mantendo a densidade crítica; cadernos diários, o inverso. Não há propriamente um método” (PIZA, 2007, p. 58).

Ainda segundo o autor, “cada publicação da imprensa tem um público-alvo e deve se concentrar em falar com ele, sem abrir mão de tentar contribuir com sua formação, com a melhoria do seu repertório” (2007, p. 47). Aqui acrescento uma reflexão: qual seria então o público-leitor de um texto de dança, seja resenha ou crítica? Para quem estamos falando? O que interessa a essas pessoas? Acredito se tratar de um assunto que ainda merece maior atenção e pesquisa.

Depois que a associação entre cultura e entretenimento se estabeleceu como prática no jornalismo cultural, houve uma consequente diminuição de espaço para as linguagens artísticas que permanecem fora do grande espetáculo das mídias. Assim, o que ganha espaço se fortalece e continua a ganhar cada vez mais espaço, e o que não está na mídia, está cada vez menos. A consequência desse aparente beco sem saída vai resultar também no tipo de produção. Soma-se a isso, o fato de que muitas reportagens apenas ecoam o momento descartável do sucesso momentâneo daquela obra/artista.

Segundo José Arbex Jr., para a atividade jornalística, a velocidade é cada vez mais importante. “A notícia é, por sua própria natureza, uma mercadoria altamente perecível, torna-se antiga no instante mesmo de sua divulgação, especialmente em um mundo interconectado por satélites e bombardeado, a cada segundo, por uma imensa montanha de novos dados” (2001, p. 88). A análise aprofundada de um espetáculo, contextualizando-o, como preconiza uma boa crítica, torna-se uma atividade cada vez mais rara. Arbex Jr. ainda afirma que essa prática também produz uma “amnésia permanente”, abandonando qualquer reflexão sobre determinado evento.

“Apenas e somente no processo de interlocução com o outro, no exercício cada vez mais difícil de saber identificar e escutar outras vozes, o crítico pode resgatar a memória dos fatos para além de sua representação estereotipada e manipulada, encontrando as perguntas certas para orientar seu trabalho de investigação e compreensão dos fatos. (...) A memória tende a ser ‘encurtada’ – ou obliterada – pelo ritmo frenético da vida condicionada pelo ‘mercado’, pelas imagens televisivas mostradas em ritmo de vídeo-espaço público, com a atomização do indivíduo que se retira para manter relação com as máquinas” (ARBEX JR., 2001, p. 270).

            Neste paradoxo entre velocidade e reflexão, experiência e tecnologia, a relação entre jornalismo e espetáculo de dança necessita encontrar seu espaço. Local este em que o jornalista cultural pode descobrir saídas textuais que complementem e contribuam para a continuidade do processo de comunicação entre espetáculo e público, ou ainda, que faça com que mais pessoas se interessem pela possibilidade de assistir a um trabalho de dança.

“O fundamental no jornalista cultural é que saiba ao mesmo tempo convidar e provocar o leitor, notando ainda que essas duas ações não raro se tornam a mesma: o leitor que se sente provocado por uma opinião diferente (no conteúdo ou mesmo na formulação) está também sendo convidado a conhecer um repertório novo, a ganhar informação e reflexão sobre um assunto que tendia a encarar de outra forma” (PIZA, 2007, p. 68).

Seria esse então um caminho para fazer com que as pessoas se sentissem “provocadas” a assistir dança? E, com o tempo, o resultado fosse um público maior e mais diversificado neste segmento artístico?

Em minha opinião, acredito que mais do que anunciar uma obra artística ou tecer comentários sobre ela, é papel do jornalista cultural refletir o comportamento, indicar tendências, contextualizar historicamente e ser um veículo entre obra e público, complementando a comunicação inerentemente presente na relação entre eles. Além, de alguma forma, tentar direcionar a reflexão deste público para algo diferente do que salta aos olhos, do óbvio, o fazendo pensar inclusive sobre a cultura na qual ele próprio é parte integrante. Concordo com Octavio Paz[2], quando defende que “ser culto é pertencer a todos os tempos e lugares sem deixar de pertencer a seu tempo e lugar” (PAZ apud PIZA, 2007, p. 62).

Há ainda outra relação entre espetáculo e mídia que cada vez mais se faz presente nas artes contemporâneas: a inserção da tecnologia como mais um instrumento comunicativo. A ideia é justamente a de utilizar os recursos tecnológicos como instrumentos de comunicação, bem como são utilizados os demais recursos sejam textuais, coreográficos, cênicos ou interpretativos. Com auxílio de tantos elementos comunicativos e, como consequência, atingindo de diversas formas seu público, quando começar a olhar para si mesma com maior complexidade – com maior grandeza – , a dança brasileira vai dar um salto, salto esse que não se trata de um passo qualquer de uma coreografia.


Referências Bibliográficas:

ARBEX JR., J. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. 4. ed. São Paulo: Casa Amarela, 2001.

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BOURRIAUD, N. Estética relacional. [S.l.]: Martins Fontes, 2001.

BRIGGS, A.; BURKE, P. Uma história Social da Mídia: de Gutenberg à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

HOHLFELDT, A.; MARTINO, L. C.; FRANÇA, V. V. Teorias da comunicação: conceitos, escolas e tendências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

LIMA, L. C. Teoria da Cultura de Massa. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

MELO, J. M. D. A opinião no Jornalismo Brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1985.

MELO, J. M. D. Jornalismo Opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro. 3. ed. Campos de Jordão, RJ: Mantiqueira, 2003.

PIZA, D. Jornalismo Cultural. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2007.

RÜDIGER, F. Introdução à Teoria da Comunicação: problemas, correntes e autores. 2a. ed. São Paulo: Edicon, 2004.

SFEZ, L. Crítica da comunicação. São Paulo: Edições Loyola, 1994.







[1] Jornalista, cientista político e cientista das comunicações, Harry Pross possui mais de 25 livros publicados e foi um dos pensadores da comunicação de maior destaque dos últimos anos. Foi professor e diretor do Instituto de Ciências da Comunicação da Freie Universität Berlin. Morreu em 2010. (Fonte: <http://es.wikipedia.org/wiki/Harry_Pross>).
[2]  Poeta, ensaísta, tradutor e diplomata mexicano, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1990. 

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Sem Ar

Sobre Anseio - Companhia de Danças de Diadema
Por Igor Gasparini

    


Chamego... Afago... Beijo...  Três palavras que ficaram em minha cabeça após cena do espetáculo Anseio, apresentado na última semana (24 a 27), pela Companhia de Danças de Diadema, na Sala Paissandu, palco de dança da Galeria Olido, em programação da Prefeitura de São Paulo. Com coreografia de Cláudia Palma, o trabalho lotou a sala de espetáculos e deixou muita gente sem ar.

O público adentra o espaço já com o espetáculo iniciado e se depara com um bailarino, no canto do palco, enchendo sacos plásticos de ar. Por algum tempo ele permanece nesta ação e prendendo-os em si. Aos poucos, as pessoas vão se acomodando em suas poltronas, mas em muito pouco tempo, a atmosfera proposta em cena já está construída. Rapidamente, todos se envolvem e sentem no corpo sensações distintas cena a cena.

Na sala quente da Galeria Olido foi faltando o ar... Solos, duos e conjuntos trouxeram proposições cênicas em que os anseios vieram à tona. Ora com respiração ofegante, ora na relação de um com o outro; na opressão, nas vontades, no contato entre os corpos. Dez bailarinos mostraram mais que movimentos, mas interpretaram e vivenciaram uma experiência comum: a ansiedade diante de tudo aquilo nos faz perder o ar.

Refletindo sobre vida e morte, sobre o último suspiro e sobre a relação com o envelhecimento, o espetáculo respira ora lentamente, quase que por aparelhos, ora agitado, precisando de mais oxigênio. E isso vai tocando o público e o fazendo refletir sobre “Qual é o seu anseio?”.




Tal pergunta foi realizada por Cláudia Palma aos bailarinos durante o processo de montagem e ela afirma: “trabalho com essa pergunta inicial para que eles reflitam e possam passar todo esse universo para a dança. O que eles trazem para mim de imagens norteia esse trabalho”. Claudia, que há 25 anos trabalha com dança, atuou em companhias como o Balé da Cidade de São Paulo e hoje dirige a iN SAiO Cia. de Arte.

Criada por Ivonice Satie, a Companhia de Danças de Diadema está, desde 2003, sob a direção de Ana Bottosso. E segundo informações do próprio site da Cia, “em 1994, um grupo de bailarinos, a convite da Prefeitura do Município de Diadema, selecionou bailarinos que pudessem compor uma Companhia de Danças e, ao mesmo tempo, atuar como professores de dança ou arte educadores nos centros culturais da cidade. E foi assim, que em 1995, nasceu a Companhia de Danças de Diadema e o Programa de Difusão e Formação em Dança”.   

Ao terminar o espetáculo, muitas eram as sensações: realização, perturbação, aflição, ânsia, desejo, cansaço, pulsação. Anseio! Portanto, se puder, prestigie esse trabalho, mas não se esqueça: - Antes de entrar no teatro, respire fundo! 



quarta-feira, 26 de março de 2014

De volta à Idade da Pedra

Uma reflexão sobre violência e evolucionismo

por Igor Gasparini


                Nesta última segunda, 24, ao assistir ao Programa CQC (que por sinal já foi melhor), refleti mais uma vez sobre como as pessoas podem ser violentas e como não percebem que ao sê-las, apenas contribuem para que a violência se perpetue. Duas matérias me incomodaram, não pela abordagem da emissora, mas pelas crenças dos entrevistados e, mais que isso, pelo resultado das enquetes realizadas com o público: o “documento da semana” trouxe os justiceiros à reflexão; e uma matéria sobre a “Marcha da família e Deus pela causa do diabo”, ou algo parecido, defendendo o retorno à ditadura militar. Só me restou dormir com a conclusão alarmante de que só podemos estar voltando à idade da pedra!

                Mulheres, cuidado! Daqui a pouco estarão sendo arrastadas pelos cabelos... Como se a violência contra a mulher já não fosse um problema crônico que muito se aproxima dos dois casos que reflito aqui. Na base, o preconceito. Mas na realidade o problema é muito pior: submissão, sociedade patriarcal e os complexos de macho alfa. No metrô, se está cheio, simplesmente não me aguento e começo a copular como um animal no cil; e pasmem! Está certo! Afinal, há quem diga que a mulher é a culpada por se insinuar ou usar roupas curtas. Embora não menos importante, meu foco desta vez não é refletir sobre esse tipo de violência.

                Os recentes casos de justiça com as próprias mãos leva ao debate uma realidade perigosa: a descrença e a falência das Instituições. Estado, polícia, judiciário... Todos colocados contra a parede diante de uma sociedade que clama por justiça. Até aí, o meu brado junto aos demais. O problema é quando essa descrença motiva alguns a fazerem o papel de justiceiros, tão parecido quanto aqueles filmes de faroeste, amarrando delinquentes em um poste ou surrando-os até morte. O menor de idade que foi amarrado a um poste no Rio de Janeiro e apanhou dos tais justiceiros, foi preso na semana seguinte por cometer novamente delitos na capital carioca. Palmas para os justiceiros! Palmas para a polícia! Todos tem sido muito eficientes no seu papel de recuperação.




                É bastante claro que a violência destes apenas alimenta a daqueles e assim por diante. Vamos então entregar aos leões? Não tem jeito? Será? Fica aqui então a minha reflexão: pela linha de interpretação do pensamento evolucionista, temos que os comportamentos são aprendidos e reproduzidos culturalmente. Não é algo que está na genética, mas a manifestação resultado do contato entre um com o outro. O nosso pequeno delinquente que sofre desde que nasceu por ter um pai que bate em sua mãe; passa fome porque a comida não é suficiente para seus vários irmãos; não tem oportunidades de lazer; vive em condições precárias de saneamento; entre tantos outros problemas, está sofrendo ações violentas desde que veio ao mundo e queremos que ele seja bonzinho com os mauricinhos da praia de Ipanema?

                O problema é complexo e envolve ações que perpassam pela Educação, mas principalmente, a meu ver, pela Cultura e pela Arte. Ver que 39% do público do CQC acha que é certo fazer justiça com as próprias mãos, só me faz pensar o quão atrasada está essa sociedade. E o quão perigoso pode ser resultado disso, gerando ainda mais violência.

                Como se não bastasse a minha indignação com a reportagem acima, a matéria realizada na “Marcha da família, blá blá blá” trouxe depoimentos de pessoas que, sim, acreditam na volta da ditadura como solução dos problemas. É incrível pensar como o ser humano consegue ser estúpido o bastante quando estamos prestes a relembrar os 50 anos do Golpe Militar de 64. Censura; silêncio; tortura; mortes; assassinatos; inexistência de oposição, enfim, VIOLÊNCIA! Essas pessoas, em nome de Deus, querem a volta da ditadura! Aí foi demais, meu estômago revirou, e decidi escrever esse texto.




                De alguma forma penso que posso contribuir com a reflexão de alguns, faço minha parte, e quem sabe eu possa proliferar o inverso pela comunicação, pelo jornalismo, pela dança, pela arte... seja no palco, na internet ou na sala de aula, entre alunos ou amigos... Que eu possa ao menos iniciar um movimento contrário de propagação da “não violência”. Pois isso é comprometimento!

Cada um tem o seu papel! O silenciamento de alguém, o sequer olhar para um porteiro ou faxineira de seu prédio, a desqualificação do outro, o sentimento de superioridade, o preconceito, seja qual for, todas são formas de violência e pensando que isso vai gerando consequências, que tal agirmos contra a corrente?






domingo, 23 de março de 2014

Eu digo não ao não. Eu digo: É proibido proibir


por Igor Gasparini

            Em homenagem aos 50 anos do Golpe Militar de 1964, que instaurou a Ditadura no Brasil, publico este texto escrito para uma disciplina da pós-graduação em Jornalismo Cultural, concluída pela PUC-SP.            


          O TUCA, Teatro da Universidade Católica de São Paulo, palco de inúmeras manifestações sociais e políticas, dentre elas as reuniões clandestinas da União Nacional dos Estudantes, foi sede da eliminatória paulista do 3º Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo. Neste ambiente revolucionário fortemente combatido pela ditadura, dois incêndios criminosos tentaram calar as vozes do TUCA, vozes estas que vaiaram Caetano Veloso em 1968, ao apresentar “É proibido proibir”.

Caetano rebateu as manifestações alegando que havia uma vontade de policiar a música brasileira e, dirigindo à platéia e ao júri, disparou: “Vocês não estão entendendo nada!”. A canção é desclassificada, mas o recado estava dado. Em três meses, o Ato Institucional Número 5 é instaurado e a repressão atinge o seu auge.

            Com o Congresso fechado por tempo indeterminado, forte censura adentra as redações dos jornais, das rádios, da televisão; persegue políticos que eram contra o regime, intelectuais, artistas, e todos aqueles que tentassem conscientizar a população sobre a realidade opressora brasileira. Qualquer iniciativa à democracia era combatida ferrenhamente. Escritores e jornalistas foram presos, artistas eram trancados em mictórios de quartel, outros tantos desapareceram; Caetano Veloso e Gilberto Gil, após terem seus cabelos longos raspados, no Rio de Janeiro, foram confinados em Salvador e auto-exilados para Londres. Caetano compôs: Eu quero ir, minha gente; Eu não sou daqui; Eu não sou nada; Quero ver Irene rir, em homenagem a sua irmã.

            Embora uns digam que Veloso e Gil foram forçados ao exílio, outros defendem a negação à ditadura e a saída por vontade própria, entretanto, é inegável a posição política esquerdista ativa sucessivamente defendida por eles, angariando com isso diversos inimigos no Regime Militar.

       O público do Festival era composto quase unicamente por universitários que, ao primeiro dia, dividiram-se entre a música de Caetano e a consagrada Pra não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré. Esta vence a eliminatória paulista, mas fica em segundo lugar, sob protestos, na final realizada no Maracanãzinho, perdendo para Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim. A letra de Vandré incomodava os censores, mas ao mesmo tempo era ideal para os barulhos nas passeatas e nas festas estudantis.




            Na sequência do festival, com sua roupa espalhafatosa, com seu arranjo eletrônico, com sua performance extravagante, o resultado foi a incompreensão do público que se manifestou atirando de bolas de papéis a ovos, gritando e xingando Caetano Veloso. No calor da hora, a desestruturação da Tropicália que não correspondia ao imediatismo do combate ao regime militar, não foi capaz de ser compreendida.

            Entretanto, era um ano em que jovens promissores falavam alto. Os 24 anos de Chico, os 26 de Caetano, os 29 de Glauber consagravam uma juventude inquieta, representando uma sociedade descontente. Do outro lado, no mesmo ano de 1968, todo um Regime Ditatorial que espancou atores da peça Roda-Viva, ateou fogo no Teatro Paulista e destruiu o Teatro Opinião, prendeu 920 estudantes em Ibiúna, explodiu uma bomba na Editora Civilização Brasileira, dentre tantas outras manifestações opressivas.

            Em dezembro, é baixado o AI-5, pouco depois de Richard Nixon ter sido eleito nos Estados Unidos e da invasão da Tchecoslováquia pela União Soviética. O Brasil refletia as influências políticas internacionais anteriores e termina seu ano com a imprensa censurada, com centenas de presos, diversas denúncias de tortura e morte, mas com a força de oposição daqueles que lutariam por anos e anos pelo retorno à democracia.


Assim, a resistência continuou a perpetuar, em anos de silêncio de muitos e barulho de poucos, mas ruídos que marcam positivamente a história, diferentemente do rastro de sangue derrubado pela ditadura. Deixemos Marília Pêra atuar em Roda-viva, permitamos que Glauber Rocha dê o seu grito do Corisco, e cantemos juntos com Caetano Veloso: É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte.